Memorias de estudante

Primeiro Capítulo: A admiração

Lembro-me daquelas madrugadas infindáveis, estrelas, silêncio, brisa, paz e um pouco de frio para compor o cenário nostálgico, e a admiração do meu pai pelos mistérios expansivos das estrelas que se aproveitavam intencionalmente da ausência do luar para torná-lo cada vez mais admirador da sua beleza implacável. E as águas do velho Chico naquelas madrugadas e em tantas outras eram passivamente calmas, e como corjas à servidão, espalhavam em sua profundidade e escuridão o brilho misterioso e magnético das estrelas, e céus e águas, sem sabermos onde começava e terminava quem, apaixonava assim, perdidamente meu pai.
Eu ficava bestificado com a admiração dele. Como pode tão criatura focar-se como um telescópio a ponto de deixar o pão sair das maias da rede1, tão bem rendadas pelos caprichos das nossas mãos e de tão duro tempo gestacional? Cada fura de cada peixe das maias, que procuraram o livre arbítrio direito à vida e direito ao medo da morte e a buscar as deliciosas águas frias do rio São Francisco a liberdade e a manutenção da própria espécie e da própria existência e o prazer de sentir o frio em suas escamas, pareciam, para mim, aborto. Tanto tempo, tantas horas e tantos segundos, e nem lhe falo dos segundos dedicados a cada maia de rede, e meu pai deixar fugir os peixes que seriam transformados no porto da pequena, violenta e linda cidade de Ibortirama2 em papéis, que valor tem para a manutenção e existência de nossa espécie pesqueira.
Lá vinha ele remando, admirado e tão sorridente em direção ao porto com alguns peixes que ainda pegara, por sorte ou cansaço das criaturinhas, de tantas lutarem contra as maias, deixando ser levados pela rede para um céu seco e de barcos ao encontro do deus pescador. E eu sentado na proa3 do barco, criança e tímida, insatisfeito pela suvela da noite e futurando o agir dos madruguistas4 a parasitar o suor gélido e sofrido do meu pai.
O barco encostava à margem, cansado pelo leve peso dos peixes