O segundo erro de Descartes

4622 palavras 19 páginas
Análise Psicológica (1997), 2 (XV): 221-228

O segundo erro de René Descartes
Diálogo e criatividade (*)

EMÍLIO SALGUEIRO (**)

I
No dia 13 de Janeiro de 1935, já com quarenta e seis anos de idade, escreve Fernando Pessoa, numa carta a Adolfo Casais Monteiro:
«... lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já não me lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com o título “O Guardador de

(*) Comentário à conferência de António Damásio
«Para uma neurobiologia do inconsciente» apresentada no Colóquio «100 anos de Psicanálise», Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação, Lisboa, 20 de Maio de 1995.
(**) Psicanalista e psiquiatra.

Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem desde logo dei o nome de Alberto Caeiro.»
Fernando Pessoa tinha, então, vinte e cinco anos, e eis o poema IX do Guardador de Rebanhos:
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
É íntima a relação que Fernando Pessoa – Alberto Caeiro estabelece entre o corpo e a sensorialidade, entre o corpo e a emoção, entre o corpo e o

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