Paginas do 36 a 46 do livro vigiar e punir de michel foucault
Olhou desafiadoramente o cadafalso dizendo que não era para ele que tinham erguido, já que era inocente; pediu primeiro para subir ao quarto onde apenas ficou a divagar durante meia hora, querendo sempre se justificar; depois, levado ao suplício, sobe ao patíbulo decididamente, mas quando se vê despojado das vestes e preso na cruz, pronto a receber os golpes de barra, pede para subir uma segunda vez ao quarto e lá finalmente confessa o crime e declara mesmo que era culpado de outro assassinato.
O verdadeiro suplício tem por função fazer brilhar a verdade; e nisso ele continua, até sob os olhos do público, o trabalho do suplício do interrogatório. Ele opõe à condenação a assinatura daquele que sofre. Um suplício bem sucedido justifica a justiça, na medida em que publica a verdade do crime no próprio corpo do supliciado. Exemplo do bom condenado foi François Billiard, caixa-geral do correio, que em 1772 havia assassinado a mulher; o carrasco queria esconder-lhe o rosto para defendê-lo dos insultos:
Não me infligiram, disse ele, essa pena que mereci para não ser visto pelo público... Usava ainda o traje de luto pela mulher... calçava escarpins novos, tinha frisado os cabelos e aplicara pó branco à pele, caminhava numa atitude tão modesta e imponente que as pessoas que haviam podido contemplá-lo mais de perto diziam que ele tinha que ser ou o cristão mais perfeito ou o maior de todos os