Auto do frade
O provicial e o carcereiro:
_Dorme.
_ Dorme como se não fosse com ele.
_ Dorme como uma criança dorme.
_ Dorme como em pouco, morto, vai dormir.
_ Ignora todo esse circo lá embaixo.
_ Não é circo. É a lei que monta o espetáculo.
_ Dorme. No mais fundo do poço onde se dorme.
_ Já terá tempo de dormir: a morte inteira.
_ Não se dorme na morte. Não é sono.
_ Não é sono. E não terá, como agora, quem o acorde.
_ Que durma ainda. Não tem hora marcada.
_ Mas é preciso acordá-lo. Já há gente para o espetáculo.
_ [...] Melhor arrombar a porta. Sacudi-lo.
_ Dorme fundo como um morto.
_ Mas está vivo. Vamos ressuscitá-lo.
_ Deste sono ainda pode ser ressuscitado.
_ Deste sono, sim. Do outro nem que ponham a porta abaixo.
_ Está dormindo como um santo.
_ Santo não dorme. Os santos são é mouros. Mas têm olhos bem abertos. Vi na igreja.
(MELO NETO, 1994, p.468)
p. 4
Frei Caneca:
_ Acordo fora de mim como há tempos não fazia.
Acordo claro, de todo, acordo com toda a vida, com todos cinco sentidos e sobretudo com a vista que dentro dessa prisão para mim não existia.
Acordo fora de mim como vida apodrecida.
Acordar não é de dentro, acordar é ter saída.
Acordar é reacordar-se ao que em nosso redor gira.
Mesmo quando alguém acorda para um fiapo de vida como o que tanto aparato que me cerca me anuncia: esse bosque de espingardas mudas, mas logo assassinadas.
(MELO NETO, 1994, p.468)
p.4
A gente nas calçadas:
_ Por que será que ele não fala, nem diz nada sua boca muda?
_ Senhor que ele foi das palavras não há uma só que hoje acuda.
_ Contaram-me que na cadeia lhe haviam arrancado a língua.
_ Pois se ele pudesse falar tropa ou juiz, quem que o detinha?
_ Cortaram-lhe a língua na cela
Para que não se confessasse.
_ Condenado que foi à forca, que ao inferno se condenasse.
_ Não fala porque lhe proibiram na cela onde as caveiras limpas os muros que o tinham na cela são agora essas togas, batinas.
_ Lá