ROMEU FELIPE BAC ELLAR FILHO
Doutor em Direito do Estado. Professor Titular de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Universidade Federal do Paraná
DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO: PANORAMA ATUAL DA DOUTRINA, POSSIBILIDADES DE DIFERENCIAÇÃO E
ESTABELECIMENTO DE PONTOS DE CONTATO Tratar da incidência da leicivil na atividade administrativa exige uma análise da evolução doutrinária acerca das relações entre Direito Público e Direito Privado. O esforço de estabelecer traços distintivos entre estes dois ramos do Direito Positivo, embora remanescente da história mais longínqua, terá interesse para o presente estudo a partir do Estado Liberal. Faz-se, necessário, portanto, um corte histórico, dada acomplexidade da matéria.
DEFINIÇÃO
DE
ZONAS
FRONTEIRIÇAS
ENTRE
PÚBLICO
E
PRIVADO NO ESTADO LIBERAL, ESTADO SOCIAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO No Estado Liberal, percebe-se um esforço concentrado em divisar as fronteiras entre Direito Público e Privado. Na construção do Estado de Direito, tratava-se de delimitar as esferas de atuação do Estado e do particular, a fim deresguardar a liberdade diante do exercício da autoridade. O Direito Público será, portanto, o Direito do Estado e o Direito Privado, o direito dos indivíduos, dos particulares. “A chamada summa divisio do direito estabelecia duas ordens distintas, impermeáveis, cada qual sendo regulada a sua maneira. Enquanto o Direito Privado se referia aos direitos individuais e inatos do homem, o Direito Públicoteria a função de tutelar os interesses gerais da sociedade através do Estado, que deveria se abster de qualquer tipo de incursão na órbita privada dos indivíduos.”1 No contexto do Estado Liberal, o Direito Público passa a ser compreendido como “repertório mínimo de disposições e instrumentos referentes ao governo representativo” enquanto o Direito Privado radicaliza a emancipação do indivíduo, cujoelemento central é o contrato.2
É nesse panorama que se pode perceber uma nítida assimetria na relação público-privado. O domínio do privado, nesse cenário em que prevalece o liberalismo (político e econômico), é superdimensionado. A invenção
1
MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A interdisciplinariedade no ensino jurídico: a experiência do Direito Civil. In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al(org.). Diálogos sobre Direito Civil: construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 463. 2 ARAÚJO PINTO, Cristiano Paixão. Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito. In: PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira [org.]. O novo Direito Administrativo brasileiro: o Estado, as Agências e o Terceiro Setor. Belo Horizonte: Fórum,2003. p. 37.
moderna do indivíduo – agora libertado das ‘ordens’ ou ‘estados’ que caracterizavam o Antigo Regime – permite que a forma jurídica dominante seja a do contrato, que mantém a afirmação (mesmo que fictícia, no plano material) de igualdade entre as partes acordantes. Como uma decorrência natural da luta contra o Absolutismo – e também para uma justificação operativa acerca da posição decertas camadas superiores da sociedade – o público, inteiramente associado ao Estado (observe-se que o século XIX é o período de afirmação da maioria dos Estados-Nação na Europa) é visto com desconfiança, ou mesmo reserva. [...] É nessa quadra histórica que se inicia o interesse – ainda presente – de delimitar a divisão entre Direito Público e Direito Privado.3
Rosa Maria DE CAMPOS ARANOVICHanalisa a relação entre Direito Público e Privado no auge do Estado Liberal, cujo ordenamento jurídico centralizava-se no Código Civil e a Constituição assumia lugar periférico:
Os códigos representavam, pois, não apenas o diploma básico ou a ‘constituição’ dos indivíduos, mas bem mais, o diploma básico de toda a ordem jurídica, disciplinando os institutos comuns de vários ramos do saber...