Conto

O Pianista

Era uma tarde de chuva fina em um sábado meio esparso e despedaçado. Da janela via-se a ponte que guardava infinitas histórias já passadas de particulares transeuntes. Toda a vez que o homem caminha até a janela revive a escolha por aquele apartamento: a ponte trazia para ele lembranças não vividas e infinita intimidade.
O típico para um dia daqueles era passar suas notas musicais à companhia de duas, não mais, taças de um bom vinho francês. Por vezes chegava a tocar por sete a oito horas, sem notar que o sol agora era lua em sua janela. Mas naquela tarde não sentia gozo quando se imaginava por entre os tons e acordes. Onde será que ela fora? Teria um namorado? Um ensaio? Ou ao shopping com as amigas da sua idade? Sabia, a partir do momento em que não identificou o gracioso corpo por entre as barras, que sofreria algo muito sério e doloroso no coração.
Há seis meses que Raul decidiu por viver o tempo dos seus dias entre a sua janela e o quarto da desconhecida bailarina; entre os seus rodopios, alongamentos e questionamentos próximos ao espelho. Era como se nunca tivesse conhecido alguém de forma tão límpida e profunda até (re)conhecê-la pelos vidros e horas que passavam juntos todos os dias.
Ali, sentado à distância de dez metros conhecia o primeiro ser despido e contraditoriamente vestido da mais simples e natural natureza humana. Não sabia das suas dores, gostos, vestidos, mas reconhecia naquela criatura algo que o fascinava e intimidava. Jamais cogitou procurá-la entre esquinas e padarias, já que eram quase vizinhos. Não. Seus encontros se faziam pelas molduras das janelas e do rosto desenhado pelos dedos alongados, entre os gestos mais delicados que os seus olhos já viram.
Tentou retomar a leitura de Kafka que há meses começara, mas sua mente se dispersava fácil demais entre as árvores e baratas, inquietando sua cabeça e coração para o que não se fazia presente e não dançava à frente de sua sala espaçosa e muda. Acendeu seu 12º cigarro