As M Os De Prata
Desde a minha mudança para esta zona convizinha de ciganos e barracas de madeira, que aquele ser pertence à minha «colecção dos remorsos» – museu vivo de pessoas infelizes que trago sempre na memória para, de vez em quando, me lembrar da desgraça do mundo (não sei bem. para quê). Mas a verdade é que, para viver alegre e feliz, sinto necessidade desta obrigação de untar de fel cada sorriso que me vem à boca.
Estou neste momento a referir-me ao mocito de perfil ranhoso e dois tubos ferrugentos a servirem de pernas que, às corridinhas descalças, não largava as saias da mãe, uma mulher debruada de porcaria que, todas as manhãs, antes de chegar a carroça do lixo, remexia nos caixotes já muito esgaravatados pelos cães nocturnos.
Nesse garoto, que a imundície tornava, por assim dizer, mais inocente, impressionavam-me sobretudo as mãos que me estendia a pedir esmola.
Duas mãos belas, estreitas, de longos dedos de prata transparente, colados a uns bracitos peludamente sujos de animal condenado ao trabalho do suor sem gozo. Mãos aristocráticas, em suma.
– De fidalgo! – como lhe berrava a mãe furiosa contra ninguém. – Eu dou-te a fidalguia, meu malandro!
– Porque não o manda para a escola? – ouvi eu um dia alguém perguntar-lhe, de passagem (como sabem, só conheço a desgraça e a miséria de raspão. De ouvido).
– Escola? O que ele precisa é de fossar! De um ofício! – respondia a mãe com teima quezilenta. – Não sustento calões!
E, como pude verificar pela vida fora, não desistiu desse intento porque, durante anos e anos de espionagem, acompanhei o itinerário do garoto aos tombos de ofício em ofício. Que me lembre, vendeu castanhas, carregou cestos de marçano e até o lobriguei, de bata encardida de aprendiz, muito perfilado na barbearia do bairro, a estudar com indiferença atenta os manejos da navalha vaidosa de um mestre-escama (por pouco tempo, creio-o bem). Mas sempre canhestro e desajeitado, as mãos cada vez mais esguias, de leveza longa, a contrastarem com