O verdadeiro Cristo é Marx

1191 palavras 5 páginas
O verdadeiro Cristo é Marx

Nelson Rodrigues
16 de abril de 1968

Nos momentos pânicos do Brasil, corro aos grã-finos. Bem os conheço. Têm uma fina sensibilidade histórica e, direi mesmo, um agudo faro profético. E, no último sábado, lá fui eu para um palácio no Alto da Boa Vista (o banheiro da dona da casa, todo em mármore e com bicas de ouro, é desses que exigem uma Paulina Bonaparte). Chego e caio nos braços do anfitrião. Qual um Bórgia obeso, ele me arrasta de convidado em convi­dado, fazendo as apresentações. Bem. já apertei todas as mãos presentes. E, então, ele me pergunta: — “Você não é marxista?”.

Alcei a fronte: — “Não sou marxista”. O Bórgia recua dois passos e avança outros dois, num desolado escândalo: — “Como pode? Como pode?”. E, de fato, em certas recepções, o não-marxista é olhado como se fosse uma girafa. O dono da casa atraca-se a mim, patético: — “Você tem de ser marxista!”. E, de olho rútilo e lábio trêmulo, repete o apelo: — “Seja marxista!”.

Aquela reunião tinha belas senhoras por toda parte. Eu próprio estou cercado de decotes. E, então, para me justificar e me absolver, falo de uma velha entrevista que fiz com o Otto Lara Resende, a quatro mãos. Lá está dito o óbvio, isto é, que falta a Marx a dimensão da morte. Em nenhum escrito marxista há uma linha, uma escassa linha sobre o nosso destino eterno. E, como Marx nos tirara a alma imortal, queríamos que ele a devolvesse.

Um dos decotes presentes tomou a palavra. Afirmou que, não sendo eu marxista, o meu teatro estaria mais obsoleto do que a primeira audição do “Danúbio azul”. O anfitrião secundou: — “Todo teatro moderno tem de ser marxista. Ou é marxista ou não é nem moderno, nem teatro”. Afastei-me um momento para largar o cigarro no cinzeiro. Quando voltei, o anfitrião falava para uma senhora, de belíssimo decote. Dizia ele, mais interessado no decote do que na luta de classes: — “Marx é tudo!”.

Houve uma concordância unânime (eu era a única e muda oposição). Durante duas

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