Carta veritas
34. A caridade na verdade coloca o homem perante a admirável experiência do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob múltiplas formas, que freqüentemente lhe passam despercebidas por causa duma visão meramente produtiva e utilarista da existência. O ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência. Por vezes o homem moderno convence-se, erroneamente, de que é o único autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade. Trata-se de uma presunção, resultante do encerramento egoísta em si mesmo, que provém — se queremos exprimi-lo em termos de fé — do pecado das origens. Na sua sabedoria, a Igreja sempre propôs que se tivesse em conta o pecado original mesmo na interpretação dos fenômenos sociais e na construção da sociedade. « Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da ação social e dos costumes ». No elenco dos campos onde se manifestam os efeitos perniciosos do pecado, há muito tempo que se acrescentou também o da economia. Temos uma prova evidente disto mesmo nos dias que correm. Primeiro, a convicção de ser auto-suficiente e de conseguir eliminar o mau presente na história apenas com a própria ação induziu o homem a identificar a felicidade e a salvação com formas imanentes de bem-estar material e de ação social. Depois, a convicção da exigência de autonomia para a economia, que não deve aceitar « influências » de caráter moral, impeliu o homem a abusar dos instrumentos econômicos até mesmo de forma destrutiva. Com o passar do tempo, estas convicções levaram a sistemas econômicos, sociais e políticos que espezinharam a liberdade da pessoa e dos corpos sociais e, por isso mesmo, não foram capazes de assegurar a justiça que prometiam. Deste modo, como afirmei na encíclica Spe salvi[86], elimina-se da história a esperança cristã, a qual, ao invés, constitui um poderoso recurso