A institucionalização dos descaminhos: governo político e sociedades de contrabandistas
Paulo Cavalcante 1
O título desta comunicação é inesperado. Como é possível conceber a institucionalização dos descaminhos, isto é, a oficialização da desordem? Não é fato que sempre esperamos ver o Estado e seus agentes como os legítimos instituidores da ordem?
Ou será que nos falta uma perspectiva adequada e objetiva? O que, nesse caso, nos lançaria no erro e no anacronismo. Penso que há de tudo um pouco. Sempre estamos em débito com a realidade passada. Sempre há algum anacronismo no diálogo entre o passado e o presente. Quando as temporalidades dialogam seus valores se chocam.
A época em jogo é a primeira metade do século XVIII na América portuguesa, mais especificamente o conjunto de relações lícitas e ilícitas encetadas em torno da extração de ouro e diamantes. Neste momento, Estado e sociedade portugueses se lançam avidamente sobre as Minas em busca de rendimentos e poder. Uns e outro a perfazer um círculo que se fecha sobre si mesmo: relações de poder que abrem portas para negócios, negócios que alçam pessoas a posições de poder, tudo consoante o bem comum, partilhado por todos na imagem e apropriado por poucos na prática.
O lícito é o comércio legal, autorizado, posto sob contrato e privilegiadamente atribuído. O ilícito é o descaminho, aquilo que não é legal, que passa por fora do contrato, que é subtraído ao fisco, que turva a visão dos oficiais, enfim, que é praticado por quem deveria coibi-lo. E desde logo é preciso abandonar aquele préjulgamento acerca dos roubos e do contrabando: coisa de gente de baixa extração e de negros, verdadeiros "ladrões desavergonhados". Não, não se trata disso. Aqui sim a perspectiva é falha. O vulgo "ladrão" pode ser o governador, o provedor ou o padre. Pode
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ser o grande comerciante, o oficial da Câmara ou o comandante da frota. Podem ser também negros, negras de tabuleiro ou libertos, mas não